Por Márcio F. R. Pereira
“Só se escreve bem com os pés, e não apenas com as mãos”, Frédéric Gros.
Não é comum a um autor de filosofia examinar temas e atividades ordinários. A Filosofia (com “F” maiúsculo), ocupada muitas vezes com os grandes temas da Justiça, Liberdade, Ética e Política (todos em maiúsculo), não costuma demonstrar interesse pelos chamados assuntos “menores” e comezinhos. “Caminhar, uma filosofia”, de Frédéric Gros, realiza, porém, um movimento distinto. Dentre outras coisas, a obra nos convida a refletir sobre uma atividade aparentemente banal (“coisa de criança”, como diz o próprio autor), a saber, o ato de caminhar.
Ao longo de 26 capítulos curtos, Gros, ele próprio um andarilho contumaz, mobiliza filósofos, poetas, romancistas e ativistas (de Rousseau a Nietzsche, de Thoureau a Kant, de Rimbaud a Gandhi), que têm no andar um elemento comum de suas respectivas vidas e produções. Mais que “elemento comum”, para esses autores, argumenta Gros, caminhar é um componente central de ideias e pensamentos – são os grandes espaços abertos os verdadeiros “escritórios” desses autores. Gros desafia, desse modo, a ideia que normalmente temos a respeito do processo criativo filosófico (e intelectual de um modo geral): ao invés da atmosfera úmida e austera das bibliotecas, ao invés de corpos praticamente imóveis curvados sobre mesas em meio a pilhas de livros, temos os grandes espaços abertos, amplos e arejados, como locus da produção. Aqui, a referência a Nietzsche é incontornável, quando este nos adverte de que não devemos acreditar em ideias que não tenham “nascido ao ar livre em circulação desimpedida”.
Uma outra provocação que “Caminhar, uma filosofia” faz se relaciona com as primeiras linhas dessa resenha. Ao examinar um tema aparentemente banal como a atividade de caminhar, o livro desloca o pensamento filosófico de seu “habitat” costumeiro (o dos debates sobre os grandes temas da Justiça, Liberdade, etc) para conectá-lo ao cotidiano, ao singelo ou, mais especificamente, ao presente. É este, a bem da verdade, um dos pontos mais notáveis da obra: nos convida a viver e pensar a partir de um regime de presença. Na contramão do culto à velocidade, da apologia à pressa (cada vez mais pervasiva em nossas sociedades – internet, comunicação e deslocamentos cada vez mais rápidos), é na repetição monótona, cadência constante e temporalidade de uma longa caminhada (um pé após o outro) que, segundo Gros, podemos fruir experiências verdadeiramente intensivas e presenciais. Na caminhada é todo um conjunto de afetos outros que, gradativamente, é mobilizado (beber um gole d’água, contemplar um vale, sentir a chuva, respirar, tudo isso assume um outro significado). Andar longamente funciona, assim, como meio de fazer brotar a absoluta simplicidade da presença; e, ao mesmo tempo, como instrumento de crítica ao nosso (sempre mais veloz) estilo de vida citadino. Por isso, como diz o autor ao examinar o pensamento de Thoreau, “caminhar não é reencontrar-se, mas dar a si mesmo a possibilidade de reinventar-se sempre” (p. 106).
Frédéric Gros. “Caminhar, uma filosofia”.
Tradução de Lília Ledon da Silva.
São Paulo: É Realizões Editora, 2010. 222 p.